O Pedro de 26 anos de idade deu entrada no meu serviço com o diagnóstico de Síndrome de Cushing. Dotado de um espírito de ajuda e de solidariedade, e sobretudo de uma energia contagiante, boa disposição e um sentido de humor apurado vivência o seu 5º dia de internamento.
Em tom de brincadeira avisei-o que no dia seguinte me ia aturar das 8h até à meia-noite, ao que me respondeu ironicamente já estar cheio de medo. E no fim de contas, nem se deu esse caso. Fiquei com os outros treze doentes.
«- Hoje ainda não me foi visitar nem dar um Olá! Não encontro o Enfermeiro que está comigo, e quero pedir à Sr.ª D. Maria João se posso ir lá abaixo?
- Desculpe, não percebi…
- Posso ir lá abaixo, Sr.ª D. Maria João?
- Continuo a não perceber a parte do Sr.ª D…
- Enquanto me tratar por você, é assim!
- Pode Pedro, pode ir lá abaixo “arejar”… as ideias! Eu digo ao Enf.º R.»
Durante o internamento, o Pedro tem sido “massacrado” com sucessivas colheitas de sangue a horas exactas. Um dia, estava ele a tomar o seu duche pelo inicio da manhã e foi surpreendido pela minha presença.
Bati-lhe à porta e pedi licença para entrar, tendo tido de imediato a sua autorização.
Em modos um tanto ao quanto apressados, uma vez que seria suposto estar na sala de trabalho reunida com os meus colegas durante a passagem de turno, atirei-lhe as seguintes palavras, ao mesmo tempo que abria na totalidade a cortina do duche, de tabuleiro em riste com um garrote, seringas, agulhas, tubo de hemograma e tubo seco, enquanto a água do chuveiro caía. Sendo directiva, disse:
«- Pedro sei que isto lhe pode parecer um bocado estranho mas preciso de lhe colher sangue AGORA e preciso que estique o seu braço».
Estupefacto, a segurar o chuveiro ligado com uma mão e esticando o braço mais próximo, o Pedro não disse uma palavra e atendeu prontamente o meu pedido.
Da minha parte um pedido de desculpas pela invasão da privacidade, uma palavra de agradecimento, e o fechar das cortinas. Deixei o Pedro para trás a tomar tranquilamente (espero) o seu duche e regressei à sala de trabalho.
Reporta-se a este acontecimento com naturalidade e como algo engraçado, de quem tem uma história para contar:
«- Achava que se tinha esquecido de alguma coisa na casa de banho, mas nuca pensei que me fosse tirar sangue.»
Sábado, 20h30, tínhamos acabado de começar a jantar na nossa sala de trabalho (uma sala onde não se come, salvo raras excepções), quando o Pedro bateu à porta. A sala de trabalho, como o próprio nome indica é uma sala reservada ao trabalho, onde está afixado um quadro com o nome dos doentes e outras informações relevantes, onde se guardam processos clínicos, onde os enfermeiros efectuam os registos de enfermagem, onde médicos e enfermeiros partilham informações dos doentes, onde os enfermeiros se reúnem para a passagem de turno. Mas é também um sítio reservado aos enfermeiros para brincarem, conversarem, desabafarem, fumarem um cigarro (ás escondidas) e onde habitualmente, e sobretudo à noite, pela madrugada fora se vê televisão e se ouve música…
Quando o Pedro bateu à porta estava em cima da mesa um pacote de bolachas que ele vislumbrou de imediato, enquanto nos questionava acerca de algo. Sem vergonha, pediu:
« – Têm de me dar uma bolacha dessas que eu gosto muito!»
Em tom de brincadeira: « – Não sei! Pode comer chocolates?!
- Claro que posso! Porque é que não havia de poder?»
E lá comeu as bolachas que lhe apeteceu.
Passado cerca de 20 minutos bateu novamente à porta encostada.
« – Sim!»
Em cima da mesa, três diospiros.
« – Não quero diospiro, não aprecio muito.
– Eu adoro diospiros!
– Está-nos a dizer que quer um diospiro, é isso?
– Não, obrigado!
– Vá sente-se lá aí e coma!
– Não, não. Obrigado a sério!»
A medo,
«– Sabem eu não sei arranjar diospiros, a minha mãe é que me costuma sempre arranjar. A sério!»
Três pessoas incrédulas a olharem para ele, como quem desaprova totalmente o que acaba de ouvir.
« – Sente-se lá aí, que vamos ensiná-lo a arranjar um diospiro com uma colher de sobremesa.»
Apesar do Pedro até ter transpirado e não se ter saído nem muito bem nem muito mal, lá se deliciou com o diospiro…
E pelos vistos, ficou com mais uma história para contar.
E nós também…
A Enfermagem tem “destas pequenas coisas, mil e um pormenores que nem grandiosos nem espectaculares mas que dão sentido”, ainda que por vezes invisível, a muitas coisas.
Cada doente deixa, de um modo ou de outro, as suas características, as suas marcas próprias, únicas, verdadeiramente suas e que nós “enquanto enfermeiros - privilegiados da relação” assimilamos, ao termos acesso, na prática dos cuidados, ao que de mais íntimo há na vida das pessoas.