Era um dia similar a muitos outros.
Fui trabalhar com o estado de espírito certo. Recordo-me de ter chegado ao serviço e de a primeira coisa que acontecera fora os colegas brincarem comigo, e de me rir com aquelas graçolas.
A seu tempo fui entrando no dia e no delineamento do plano de trabalho. Aparentemente, um dia trabalhoso. O dia-a-dia sem grandes sobressaltos.
Um pedido de ajuda para a transferência de uma doente, que como particularidade tinha o facto de ser russa. Como não entendia nada do que me dizia, ensinou-me a pronunciar uma palavra mágica: “há-ra-shó” (está tudo bem?).
Eram seis os doentes que não conhecia. Um doente muito jovem com uma doença oncológica complexa e grave, sobre o qual me detive mais tempo.
Mas a rotina habitual: apresentar-me e conhecer cada um deles. Uma visita a todos os quartos. Cada rosto a tornar-se-me familiar…
Uma inter-ocorrência. Parecia-me inseguro, ponderei se estaria desorientado (pareceu-me que sim à primeira vista). No entanto a sua voz era firme, e o discurso revelou-se coerente. Ajeitei as coisas a seu gosto. Partilhei com Ele como antevia uma parte da manhã, discordámos num aspecto, apresentei-lhe a justificação pelo que considerava ser o melhor para ele (ser daquela maneira e não doutra).
Antes de o deixar, mais um pedido, mas pronunciado de uma maneira agressiva. Tentei compreender como se comportou nos dias anteriores e com as outras pessoas. A informação conferia com o juízo de valor que acabava de fazer: uma pessoa com um feitio especial, com a qual iria ser precisa uma atitude de uma certa dose de relativização/paciência.
Continuei com este rasto a fazer-me pensar em estratégias de lidar com algo com que lido mal: a agressividade. A reacção mais espontânea: evitação, e ao mesmo tempo a sua consciencialização.
De repente outras solicitações, que me afastavam de Si, ás quais fui respondendo afirmativamente.
Uma força que me faz a cada instante relembrar-me do seu rosto, da sua agressividade, do desafio que seria lidar com a sua personalidade! A tomada de decisão que se me revelou: Ir ter com Ele sem intencionalidade.
Apeteceu-me, ali mesmo, desatar a chorar e depois gritar. Fazer o que me dizia: sair dali. Fugir. Negar o que ali estava a acontecer. Fiquei sem saber o que fazer. Não queria estar sozinha. Não podia, sobretudo. Nesse preciso instante lutei contra o gesto instintivo de levar as mãos à cara para tapar os olhos do lago de sangue espesso que inundava Aquele Homem da cabeça aos pés…